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bicho do mato

Aqui fala-se de natureza, aves, bichos em geral e do que mais me passar pela cabeça

bicho do mato

Aqui fala-se de natureza, aves, bichos em geral e do que mais me passar pela cabeça

09
Jan21

Almas emplumadas

Noite. Tempo de frio e breu, palco de malfeitorias e mistérios... reino de assombrações e horror. Como a humanidade sempre temeu aquilo que se esconde no escuro, não descansámos enquanto não encontrámos forma de o conquistar... criámos lâmpadas e candeeiros, munimo-nos de faróis e lanternas. Dentro de casa e até nas ruas, iluminámos a escuridão nocturna. Perdemos o medo, esquecemos os terrores...

Bem, quase todos... ainda hoje as criaturas que fazem a sua vida a coberto das trevas são mal vistas, mal compreendidas e injustificadamente temidas. Já aqui tive oportunidade de mostrar um pouco do mundo das borboletas nocturnas e de fazer referência aos morcegos (tema a que voltarei em breve), mas hoje falamos de aves.

Bufo-pequeno (Asio otus)Bufo-pequeno (Asio otus) Castro Verde (24-05-2020) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/552302

 

Tantas vezes associadas a bruxarias, ao azar ou a maus augúrios, as corujas devem ser dos animais sobre os quais mais mitos recaem. Por exempo, alguns povos africanos acreditam que estas aves trazem doenças às suas crianças, enquanto que no médio-oriente há quem acredite que estes bichos representam as almas dos que morreram e não foram vingados... diz-se mesmo que o seu avistamento prediz a morte de alguém. E até na Europa, principalmente até ao princípio do séc. 19, é possível encontrar esta associação aos espíritos, às bruxas e à morte. 

Coruja-do-nabal (Asio flammeus)Coruja-do-nabal (Asio flammeus) Vila Franca de Xira (28-12-2020) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/557487

 

Ainda assim, nem todos os mitos que rodeiam esta aves são macabros... na Grécia antiga, os mochos era vistos como um símbolo de justiça e sabedoria, sendo associados à deusa Athena e tendo a sua imagem sido adoptada por exércitos e até cunhada em moeda. Na Índia, no Japão e no Brasil, por exemplo, existem culturas que vêem estes animais como augúrios de boa sorte e fortuna. 

Mocho-galego (Athene noctua)Mocho-galego (Athene noctua) Ferreira do Alentejo (08-07-2020) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/584232

 

Também no nosso Portugal existe bastante folclore ligado a estes animais. Até na obra de um dos maiores nomes da nossa cultura podemos encontrar referências a uma destas belas aves:

“Pia, pia, pia
O mocho,
Que pertencia
A um coxo.
Zangou-se o coxo
Um dia,
E meteu o mocho
Na pia, pia, pia.”

Esta quadra do grande Fernando Pessoa, juntamente com outras estórias, pode ser encontrada num trabalho realizado pela associação ALDEIA, intitulado "As Rapinas Nocturnas na Cultura Popular Portuguesa - pequenas histórias".

Bufo-real (Bubo bubo)Bufo-real (Bubo bubo) Sintra (11-07-2020) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/603079

 

Mas o que têm estes animais de especial, para que sejam tema de tantas superstições? O que os torna um alvo tão apetecível para a capacidade inventiva da ignorância humana? Bem, o facto de serem aves essencialmente nocturnas será certamente um dos principais motivos... os seus olhos grandes, adaptados a ver no escuro, assombram-nos e o seu voo silencioso parece-nos fantasmagórico. Além disso, o facto de algumas espécies de mochos e corujas colonizarem edifícios abandonados, celeiros ou torres de igrejas excita a nossa imaginação supersticiosa. E o que dizer das suas vocalizações lúgubres, transportadas pelo frio escuro da noite? Quem não se arrepiaria ao escutá-las?

Mocho-pequeno-de-orelhas (Otus scops)Mocho-pequeno-de-orelhas (Otus scops) Penamacor (18-06-2017) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/548633

 

Mas então, afastando-nos um pouco das mitologias, porque é que estas aves apresentam estas características e comportamentos tão específicos?

Algumas espécies, como os mochos e as corujas-das-torres desenvolveram a capacidade de caçar em meios mais urbanizados. As actividades humanas atraem ratos e os ratos atraem estas aves. Portanto, celeiros e outras infraestruturas agrícolas são excelentes zonas de caça e, uma vez que se adaptaram à vida nestas zonas, onde arranjariam melhor protecção para descansar e até procriar do que em edificações abandonadas ou pouco visitadas? Dificilmente esta situação derivaria de ligação a espíritos ou bruxarias, mas antes de uma simples adaptação evolutiva... estes bichos aprenderam a usar-nos.

Quanto aos sons que emitem, as rapinas nocturnas não são (de longe) as únicas aves com vocalizações estranhas aos nossos ouvidos. Mas será que seriam assim tão assustadoras se escutadas durante o dia? O "miado" do mocho, ou o "uhh uhh" do bufo em pleno dia não têm o mesmo efeito em nós do que os mesmos sons ouvidos de noite... na verdade, é a nossa predisposição para o medo do escuro que nos causa os arrepios. As corujas vocalizam pelas mesmas razões que as outras aves. Não são almas a gritar no vazio... são avisos, chamamentos, marcação de território. Comunicação.

Mas e o voo silencioso? Nenhuma outra ave faz aquilo... só podem ser espíritos maléficos! Bem... não, nem por isso. A realidade é bastante mais interessante e complexa. A evolução levou a que estas aves desenvolvessem uma série de características e até estruturas específicas que ajudam a eliminar o som da turbulência do ar criada pelo bater das asas. Estes membros superiores são maiores em proporção com o peso do corpo, relativamente à maioria das outras aves. Isto permite-lhes um voo mais lento e menor número de batimentos de asa. Além do mais, as penas de voo (rémiges) possuem umas estruturas serrilhadas nos bordos que ajudam a quebrar a massa de ar que gera a turbulência. As diversas e menores correntes de ar assim criadas são depois amortecidas pelas penas que são mais aveludadas do que nos outros grupos de aves. Apesar de ainda haver muito para ser compreendido, existem já alguns estudos publicados com informação muito interessante sobre este assunto.

Quanto à razão que levou estes animais a desenvolverem este tipo de voo ao longo das eras, existem duas hipóteses principais em equação. A teoria da "caça furtiva" indicia que esta característica se deve à necessidade de aproximação sem que as presas se apercebam da sua presença. Já a teoria da "detecção de presas" indica que o voo silencioso serve essencialmente para ajudar as corujas a detectarem as suas presas através da audição. Estes animais têm uma audição extremamente apurada, que é auxiliada pelo seu característico disco facial, actuando quase como uma antena parabólica.

A investigadora da Universidade da Califórnia, Krista Le Piane, tem vindo a estudar estas duas hipóteses, na tentativa de compreender qual delas, se é que alguma, explica a evolução desta característica específica. Ao que parece, as espécies que caçam insectos ou peixes têm menos estruturas insonorizantes, por comparação com as que caçam mamíferos. O mesmo acontece em relação às espécies que caçam exclusivamente de noite, por comparação com as que também caçam de dia. A sua equipa de investigação tem percebido que estas evidências corroboram ambas as hipóteses, dependendo de cada espécie.

Tudo isto é bastante mais interessante do que as explicações esotéricas, diria eu...

Coruja-das-torres (Tyto alba)Coruja-das-torres (Tyto alba) VFX (28-12-2020) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/611761

 

Já os seus olhos, grandes em relação ao tamanho da ave, são outra fantástica adaptação. Embora o seu funcionamento geral seja semelhante aos nossos próprios olhos, existem algumas diferenças que ajudam a tornar possível a visão nocturna. Estes orgãos não são globos oculares, como os nossos, mas sim estruturas tubulares... daí que as corujas não consigam mover os olhos. Tal como nós, as corujas possuem dois tipos de receptores, que captam a luz que passa pelas pupilas. Os receptores cónicos permitem ver a cores, mas apenas funcionam bem quando há muita luz. Já os cilíndricos só permitem uma visão monocromática, mas são muito eficientes mesmo em baixas condições de luminosidade.

Ao contrário de nós, as corujas possuem uma muito maior quantidade de cilindros do que de cones, o que implica que não têm uma grande capacidade de distinguir cores, mas conseguem aproveitar bastante melhor as menores quantidades de luz. É essencialmente isto que, associado ao facto do seus enormes olhos captarem melhor a luz, lhes permite ver no "escuro". Estas aves possuem ainda uma outra estrutura, uma espécie de "espelho", chamada de tapetum lucidum. Quando a luz passa pelos receptores, incide neste espelho e é reflectida de volta para eles. Isto dá-lhes a uma segunda hipótese de aproveitarem cada pedacinho de luz disponível. 

Coruja-do-mato (Strix aluco)Coruja-do-mato (Strix aluco) Setúbal (26-12-2020) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/599710

 

Mas as corujas não são as únicas aves que podemos encontrar pela noite fora...

Os misteriosos Noitibós (ocorrem duas espécies no nosso país) são outro grupo de aves que, devido aos seus hábitos, tende a escapar ao conhecimento comum e, portanto, a dar origem a mitos. A aura de mistério é tão forte em volta destes bichos que foi até homenageada pelos cientistas quando atribuiram um nome à ordem à qual pertencem: Caprimulgiformes.

Caprimulgus, em latim, pode ser traduzido por ordenha-cabras. Isto é algo que nos parece estranho, mas não mais do que isso. Já na América um dos nomes pelos quais estas aves são conhecidas é "goatsuckers" ou, traduzindo... chupa-cabras. Terá ligação com o outro famoso mito? Não consegui averiguar.

A lenda por trás deste nome terá, ao que parece, origens anteriores aos tempos de Aristóteles. Estas aves seriam possivelmente atraídas pelos insectos que frequentavam os terreiros onde as cabras dormiam. Devido ao seu hábito de poisar em terreno limpo (provavelmente junto ao gado) e ao seu perfil baixo e longilíneo, de cabeça meio levantada, seria fácil ao homem antigo assumir que lhes estavam a sugar o leite. Mais, tendo abatido algum e constatado que possuem um bico minúsculo e uma enorme boca, que outra conclusão se poderia tirar que não a de que aquela boca seria própria para mamar nas tetas das cabras? Possivelmente nunca se pensou que serviria para ingerir insectos... isso seria parvo.

Deixo-vos um interessante artigo sobre o folclore acerca destes bichos.

Noitibó-de-nuca-vermelha (Caprimulgus ruficollis)Noitibó-de-nuca-vermelha (Caprimulgus ruficollis) Vila nova de Milfontes (18-08-2019) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/567036

 

Então e nos dias de hoje, em que poucos de nós possuem cabras, o que há a temer em relação a estas curiosas aves? Na realidade nada, mas... a escuridão silenciosa da noite não cessa de nos pregar partidas.

Raramente são vistas de dia, altura na qual estão a descansar, muito por culpa da sua plumagem críptica. E durante a noite? Bem... são mais vezes escutados do que vistos. As vocalizações destas aves são, aos nossos ouvidos, completamente alienígenas. Aquele som não pode vir de uma ave... é impossível! E aquele bater palmas a ecoar na noite, poderá vir de algo que não de uma qualquer alma penada? Poderá vir do voo de exibição de um noitibó, do hábito de bater com as asas uma na outra, fazendo o som de "bater palmas"? Nah, isso não faria sentido...

Quando são efectivamente vistos, encontramo-los poisados numa qualquer estrada de terra batida, ou vemos a sua forma rápida, esguia e escura a passar em voo, com os seus grandes olhos a brilhar perante os faróis do automóvel e uns pontos iluminados na cauda e nas asas. E se, ao mesmo tempo, os ouvirmos a vocalizar e até a bater palmas... Cruzes canhoto! Almas penadas! Emissários do Mafarrico! Vade retro!

Noitibó-cinzento (Caprimulgus europaeus)Noitibó-cinzento (Caprimulgus europaeus) Almada (16-07-2020) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/611749

 

A melhor forma de abandonarmos os nossos medos, por primitivos e irracionais que sejam, é através do conhecimento. Observando e estudando um pouco sobre o mundo que nos rodeia podemos compreender aquilo que nos assusta, que nos causa apreensão ou repulsa. Todas estas aves nocturnas têm pouco de obscurantismo. São antes animais fantásticos, possuidores de magníficas adaptações evolutivas e é, na verdade, um verdadeiro privilégio conseguir observá-los.

 

Nada na vida deve ser temido, somente compreendido. Agora é hora de compreender mais para temer menos.

Marie Curie

01
Jan21

2020 aos olhos de um naturalista

Há cerca de um ano atrás era reportado o primeiro caso de uma doença que viria a mudar as vidas de todos nós. Os meses seguintes foram um corrupio de estudos científicos, noticiários sensacionalistas, pânico social, açambarcamento de papel higiénico, teimosias negacionistas e jogos políticos. Veio o distanciamento social, foram introduzidas as máscaras e o álcool-gel, chegou o confinamento... a nossa sanidade mental e a nossa resistência à depressão foram testadas ao limite. Quando finalmente pudemos sair de casa, fomos trabalhar e visitar a família, fomos à praia e aos restaurantes, mas sempre limitados por restrições antes impensáveis. Nada de abraços e beijinhos, pois o distanciamento é para manter, higienizar as mãos N vezes ao dia e usar papeis para tocar nos objectos, pois o "bicho" anda aí e é invisível... e assim o "novo normal" instalou-se nas nossas vidas e nas nossas mentes. Hoje, as omnipresentes máscaras têm a dupla função de nos proteger e de disfarçar a profunda frustração que apenas os nossos olhos teimam em denunciar.

Poucos haveria entre nós que não estivessem ansiosos que o anno horribilis terminasse... afinal, todos sentimos que foram 12 meses perdidos em que nada ou quase nada pudemos fazer. Ou não será bem assim?

Bem, os profissionais de saúde e os cientistas tiveram, infelizmente, um ano cheio. A eles devemos sincera gratidão pelo que trabalharam e pelo que sacrificaram pelo bem de outrem. O comum "Zé", no entanto, ficou por casa... trabalhou quando possível, viu séries, fez pão caseiro, leu livros e falou com família e amigos pela net. Pouco mais lhe foi permitido fazer. Os famosos "passeios higiénicos" foram permitindo o arejamento das cabeças e foi durante o confinamento que se começou a notar uma curiosa tendência: o medo dos espaços fechados trouxe muito mais gente para a natureza.

Mas... e aqueles que já antes passavam os seus tempos livres na natureza? Bem, não posso falar pelos outros, mas eu aproveitei o máximo que pude.

https://www.inaturalist.org/

https://www.inaturalist.org/stats/2020/draposo79#sharing

Durante os meses de confinamento, acabei por passar muito tempo "em casa" com pouco para fazer, uma vez que as minhas funções profissionais não se adequam ao teletrabalho. Como as deslocações estavam proibidas, comecei a aproveitar os passeios higiénicos para explorar todo e qualquer espaço natural em redor de casa. Apesar da maior perturbação devido à presença de mais pessoas, acabei por descobrir uns recantos interessantíssimos, tal como descrevi aqui. Com o desconfinamento, voltei a poder fazer as minhas saídas mais longas e a explorar um pouco outras zonas do país.

Ainda que tenha sido obrigado a cancelar alguns projectos, como uma exploração ao Planalto do Barroso na primavera, 2020 acabou por ser um dos meus melhores anos a nível ornitológico... logrei observar 259 espécies de aves. Quanto à minha faceta naturalista mais genérica, tal como o gráfico acima indica, no total efectuei registos fotográficos de 865 espécies, entre animais, plantas e fungos. Esta forma de passar os tempos livres (chamem-lhe hobbie, passatempo, pancada, nerdice, ou o que quiserem) acabou, em grande medida, por me ajudar a suportar um ano terrivelmente difícil de digerir a tantos outros níveis.

Como corolário para tudo isto, tive o privilégio de passar penúltimo dia do ano numa incursão assaz proveitosa por terras alentejanas, recheada de fantásticas observações. Uma excelente maneira de terminar o ano...

Bufo-pequeno (Asio otus) Castro Verde (30-12-2020)Corvo (Corvus corax) Castro Verde (30-12-2020)
Cisne-mudo (Cygnus olor) Castro Verde (30-12-2020)Grifo (Gyps fulvus) Castro Verde (30-12-2020)
Bufo-pequeno (Asio otus) Castro Verde (30-12-2020)Águia-real (Aquila chrysaetos) Castro Verde (30-12-2020)
Milhafre-real (Milvus milvus) Castro Verde (30-12-2020)Abetarda (Otis tarda) Castro Verde (30-12-2020)
Bufo-pequeno (Asio otus) Castro Verde (30-12-2020)Sisão (Tetrax tetrax) Castro Verde (30-12-2020)
Águia-imperial-ibérica (Aquila adalberti) Castro Verde (30-12-2020)Cortiçol-de-barriga-preta (Pterocles orientalis) Castro Verde (30-12-2020)

 

Neste ano que agora entra, aventurem-se, explorem a natureza, usufruam dela, mas acima de tudo respeitem-na e protejam-na. 2020 deu-nos a prova de que, quando as coisas correm mal no nosso mundinho de cimento e vidro, é ela que nos acolhe...

Castro Verde (30-12-2020)

Bom 2021!

 

 

Eu

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