Para aqueles maluquinhos que fazem da observação de aves o seu hobbie (e às vezes a sua obsessão), as migrações primaveril (pré-nupcial) e outonal (pós-nupcial) apresentam oportunidades únicas de observação, pois trazem de passagem algumas espécies que dificilmente podemos observar noutras alturas do ano. A migração pós-nupcial é especialmente profícua, pois é no fim de verão/início de outono que as aves juvenis, nascidas mais a norte na Europa, empreendem a sua longa jornada a caminho de terras mais quentes... umas seguem para África, outras invernam por cá, na Península Ibérica.
Nesta época do ano, entre meados de agosto e meados de novembro (grosso modo), por todo o país surgem bichos de passagem, a caminho do Sul. É uma altura incrível, onde qualquer ave pode aparecer em qualquer sítio. Mas há um local específico para onde todos parecem convergir, tanto as aves como os observadores que as procuram.
Bem-vindos a Sagres, a capital da observação de aves em Portugal.
Mas o que torna esta região tão atractiva nesta altura do ano?
Bem, é sabido que ninguém nasce ensinado... nem mesmo os animais, por muito bons que sejam os seus instintos. Após a reprodução, com a diminuição de horas de luz do dia, as aves migratórias começam paulatinamente a encetar o seu percurso a caminho de paragens mais meridionais. Umas seguem em bando, outras de forma mais isolada, mas todas elas são empurradas para sul pela sua bússola interna. Sucede que os adultos, tendo já efectuado pelo menos uma migração anteriormente, têm o azimute mais afinado e seguem directos para Gibraltar, o ponto onde irão atravessar o Mediterrâneo.
Já os putos, mais inexperientes e destrambelhados, vão descendo o país um pouco mais "à toa", mais dependentes dos ventos e da orografia do terreno. Só "sabem" que têm que seguir mais ou menos para os lados do sul, mas não sabem a rota, pelo que muitos acabam por aproximar-se da costa oeste e utilizam o mar como rumo. No entanto, entrando na península de Sagres, voltam a dar de caras com o mar na costa sul, ficam baralhados e, muitas vezes, permanecem a circular ali na região vários dias até finalmente se orientarem e seguirem para Gibraltar.
Se há um espectáculo que merece ser visto pelo menos uma vez, por aqueles que têm fraquinho por estes bichos emplumados, é o de dezenas de indivíduos de várias espécies de aves planadoras a circular pelos céus, à procura do caminho para um sítio que nunca viram...
Mais para fins de outubro, é especialmente impressionante observar isto a suceder com bandos de centenas de grifos. Chega a haver milhares destas aves a circular pela região ao mesmo tempo.
Grifo (Gyps fulvus) Sagres (04-11-2021)
Não é, portanto, de estranhar que ali tenha nascido o Festival Observação de Aves & Atividades de Natureza de Sagres, que este ano teve a sua 13ª edição. Todos os anos, geralmente na semana do feriado do 5 de outubro, dezenas de visitantes de várias nacionalidades vão observar de perto a migração e participar nas diversas actividades disponibilizadas pela organização.
Mas as pessoas que se deslocam a Sagres nos inícios de outono não vão apenas à procura de rapinas. Entre aves residentes e migradoras, terrestres e marítimas, já foram observadas mais de 300 espécies na região. Há muito para ver...
Chasco-cinzento (Oenanthe oenanthe) Sagres (08-10-2022)Tarambola-cinzenta (Pluvialis squatarola) Sagres (07-10-2022)Toutinegra-do-mato (Sylvia undata) Sagres (07-10-2022)Papa-figos (Oriolus oriolus) Sagres (06-10-2022)Tarambola-dourada (Pluvialis apricaria) Sagres (05-10-2022)Papa-moscas-preto (Ficedula hypoleuca) Sagres (05-10-2022)Cotovia-arbórea (Lullula arborea) Sagres (03-10-2022)Rabirruivo-de-testa-branca (Phoenicurus phoenicurus) Sagres (02-10-2022)Estorninho-malhado (Sturnus vulgaris) Sagres (07-11-2021)Cotovia-escura (Galerida theklae) Sagres (07-11-2021)Galheta (Gulosus aristotelis) Sagres (07-11-2021)Melro-de-colar (Turdus torquatus) Sagres (07-11-2021)Tordo-zornal (Turdus pilaris) Sagres (25-10-2019)Rabirruivo-de-testa-branca (Phoenicurus phoenicurus) Sagres (06-10-2017)Papa-moscas-preto (Ficedula hypoleuca) Sagres (06-10-2017)Casquilho (Oceanites oceanicus) ao largo de Sagres (06-10-2017)Alma-de-mestre (Hydrobates pelagicus) ao largo de Sagres (06-10-2017)Alcatraz (Morus bassanus) ao largo de Sagres (06-10-2017)Toutinegra-de-bigodes (Curruca iberiae) Sagres (05-10-2017)Papa-amoras-comum (Curruca communis) Sagres (05-10-2017)Mocho-galego (Athene noctua) Vila do Bispo (02-10-2016)Trigueirão (Emberiza calandra) Sagres (02-10-2016)Torcicolo (Jynx torquilla) Vila do Bispo (30-09-2016)Gralha-de-bico-vermelho (Pyrrhocorax pyrrhocorax) Vila do Bispo (30-09-2016)Corvo (Corvus corax) Sagres (07-11-2021)Pardela-balear (Puffinus mauretanicus) Sagres (36-10-2019)Melro-azul (Monticola solitarius) Boca do Rio (10-06-2016)Chasco-ruivo (Oenanthe hispanica) Sagres (10-06-2016)
Entre todas estas espécies, há sempre algumas que chamam mais a atenção ou geram mais procura, quer seja por serem especialidades da região, ou por serem aves mais incomuns ou até raras.
Com tantas aves a circular na zona, é inevitável que acabem por interagir connosco e com o nosso modo de vida.
Esta interacção é especialmente preocupante nos parques eólicos da região, que representam um perigo muito real para grandes planadoras, como águias, cegonhas e abutres. As empresas gestoras destes parques contratam, no período mais crítico do ano, consultoras que colocam equipas no terreno, garantindo uma monitorização permanente. Estas equipas dispõem inclusivamente da capacidade de parar os geradores, em caso de perigo eminente. Felizmente, estas medidas de mitigação têm mostrado ser bastante eficientes.
Outras interacções aves/humanos podem parecer mais inócuas, mas nem sempre é bem assim.
Os extra-maluquinhos que se decidam a levantar bem cedo para dar uma volta pela zona, arriscam-se a ter surpresas como dar de caras com um bando de dezenas ou até centenas de abutres a dormitar no chão. Claro que a tentação de nos aproximarmos é bastante difícil de resistir... as fotos que poderíamos conseguir, se chegássemos perto...
No entanto, os resultados disso tendem a ser bastante perniciosos para as aves. O mais provável é que estas se vão assustar e levantar voo mais cedo do que o suposto, acabando por não descansar tanto quanto precisavam. Não esqueçamos que são aves enormes, a meio de uma viagem de milhares de km... toda a energia poupada é preciosa.
E, se os fizermos levantar voo assustados nas imediações de um parque eólico, mais do que meramente pernicioso, o resultado pode ser catastrófico.
Grifos (Gyps fulvus) Sagres (07-11-2021)
De qualquer forma, podemos apreciar à distância e até conseguir algumas fotos sem incomodar os bichos. Basta que tenhamos em mente mais o seu interesse do que o nosso.
As fotos acima foram todas conseguidas a uma distância segura, de dentro do carro, parado na berma de uma estrada alcatroada. Não serão imagens tecnicamente perfeitas, mas são excelentes recordações de um incrível "momento National Geographic", num dia em que decidi dar uma volta à toa, ao nascer do dia, sem percurso nem destino definidos.
Definitivamente, no outono, Sagres é o ponto de encontro dos que não sabem o caminho...
Fazer observação de natureza implica passar muito tempo no campo. A sós ou acompanhados, aqueles que são apaixonados por esta actividade acabam por ter o privilégio de presenciar cenas de vida selvagem que a maioria das pessoas "comuns" apenas vê nos documentários na televisão.
Entre estes privilegiados, uns têm uma perspectiva artística sobre aquilo que observam na natureza, alguns enveredam por um caminho filosófico ou espiritual, enquanto outros seguem uma visão mais científica, alguns têm até uma aproximação brincalhona e há também aqueles que misturam um pouco de tudo isto... o que importa na realidade é que cada um retire as ilacções, os conhecimentos e a satisfação que mais se adequa à sua forma de ver a natureza.
Concretizando a sua paixão na tentativa de conseguir a foto mais perfeita, os "fotógrafos de natureza" dividem a sua atenção entre a compreensão da arte fotográfica (a luz, os enquadramentos, a exposição) e o conhecimento sobre os seus "motivos". Com o advento da fotografia digital, esta actividade sofreu um autêntico boom e hoje proliferam pela Internet bonitos retratos de bichos... mas aquele momento especial ou aquele comportamento inaudito registados com excelente qualidade de imagem e real dimensão artística são ainda prémios ao alcance de muito poucos. Estes parcos verdadeiros fotógrafos de natureza são de facto uma classe à parte. Seja como for, dificilmente veremos qualquer uma destas pessoas no campo sem uma câmara na mão... a imagem é a sua vida.
Mais preocupados com o conhecimento científico sobre o mundo natural, os chamados "observadores" concentram as suas energias em compreender aquilo que observam. Que espécies de aves há em determinado local? Quantos indivíduos existem? Quando e porque estão ali presentes? Como se comportam e qual a razão ou significado dos seus comportamentos? Como interagem com o meio? O seu equipamento essencial é materializado num par de binóculos e num bloco de notas (hoje muitas vezes substituído pelo smartphone), mas é muito comum vê-los carregando às costas um telescópio e também... uma câmara fotográfica. Embora até estas pessoas dêem importância à recolha de imagens, o seu foco não é esse e é comum que os resultados sejam sofríveis, apenas meros registos da presença da espécie fotografada.
Confesso que pertenço a este último grupo. Geralmente sozinho, algumas vezes acompanhado por um restrito grupo de "correligionários", ando pelos matos a identificar, contar e registar aves e outros seres vivos. Gosto de obter conhecimento sobre os bichos que observo, seja ele empírico, através da observação directa ou mais académico, utilizando livros e guias.
O meu equipamento fotográfico é fraco, o meu conhecimento de fotografia é limitado e a minha sensibilidade artística é quase nula. Como tal, as minhas fotos são sofríveis e os meus vídeos são demasiado amadores. Ainda assim, vou tentando usá-l@s para transmitir um pouco de conhecimento e, porque não, causar uns sorrisos.
Ciência cidadã, é o péssimo nome que dão aos dados que vão sendo recolhidos por pessoas como eu. Ainda assim é ciência e, como tal, deve ser levada a sério, não é? Beeeeem... sim, a nossa actividade contribui um pouquinho para a ciência, mas isso não implica que não estejamos ali para nos divertirmos.
Como em tantas outras actividades, é importante não nos levarmos demasiado a sério. Um olhar crítico e bem humorado é essencial para que um hobbie não passe a ter o peso de um trabalho. Afinal, a vida deve ser levada com leveza e, para nerds como eu, nada é mais divertido do que fazer ciência... a brincar.
(PS: vejam os vídeos com som e em 1080p HD, ficam menos maus assim)