Coruja-das-torres (Tyto alba) Vila Franca de Xira (12-08-2021)
Estas belas aves nocturnas, em declínio no nosso país, convivem em relativa proximidade connosco, pelo que todos podemos ajudar a obter conhecimento sobre o número dos seus efectivos. Caso queiram participar no censo, basta seguir as instruções que estão no link que coloquei no início. Para esclarecimento de dúvidas, ou envio dados, podem contactar-me directamente através do endereço danny.bicho.do.mato@gmail.com.
O conhecimento é o primeiro passo para a conservação e a ciência cidadã pode ter uma palavra a dizer neste âmbito.
Em janeiro de 2022 irá ser realizado pela segunda vez um censo ibérico da população invernante de águias-pesqueiras. Iniciativa original do portal avesdeportugal.info, este será o quinto censo desta espécie a ser levado a cabo no nosso país.
Os locais a visitar compreendem as zonas húmidas costeiras (estuários, rias e lagoas), bem como as grandes albufeiras do interior.
Águia-pesqueira (Pandion haliaetus) Lezíria Grande de Vila Franca de Xira (23-12-2017)
Para participar autonomamente é necessário apenas possuir um par de binóculos e saber identificar uma águia-pesqueira. Pessoas que não possuam um (ou ambos) destes requisitos e ainda assim desejem participar nesta acção de ciência-cidadã, serão (dentro da medida do possível) colocadas com um observador mais experiente que possa assegurar a contagem.
Rede provisória de pontos de observação no estuário do Tejo - jusante
Pela terceira vez vou estar a coordenar as contagens na área do estuário do Tejo jusante (entre Pancas e o Seixal) e, se desejarem participar nesta área, podem entrar em contacto comigo através da caixa de comentários ou do email disponível no meu perfil. Caso o pretendam fazer noutra zona do país, podem à mesma contactar-me (eu encaminho-vos para o respectivo coordenador regional), ou enviar um email directamente à coordenação nacional através do endereço geral@avesdeportugal.info.
Venham passar uma manhã no campo e contribuir um bocadinho para o conhecimento sobre esta incrível ave de rapina.
Noite. Tempo de frio e breu, palco de malfeitorias e mistérios... reino de assombrações e horror. Como a humanidade sempre temeu aquilo que se esconde no escuro, não descansámos enquanto não encontrámos forma de o conquistar... criámos lâmpadas e candeeiros, munimo-nos de faróis e lanternas. Dentro de casa e até nas ruas, iluminámos a escuridão nocturna. Perdemos o medo, esquecemos os terrores...
Bem, quase todos... ainda hoje as criaturas que fazem a sua vida a coberto das trevas são mal vistas, mal compreendidas e injustificadamente temidas. Já aqui tive oportunidade de mostrar um pouco do mundo das borboletas nocturnas e de fazer referência aos morcegos (tema a que voltarei em breve), mas hoje falamos de aves.
Tantas vezes associadas a bruxarias, ao azar ou a maus augúrios, as corujas devem ser dos animais sobre os quais mais mitos recaem. Por exempo, alguns povos africanos acreditam que estas aves trazem doenças às suas crianças, enquanto que no médio-oriente há quem acredite que estes bichos representam as almas dos que morreram e não foram vingados... diz-se mesmo que o seu avistamento prediz a morte de alguém. E até na Europa, principalmente até ao princípio do séc. 19, é possível encontrar esta associação aos espíritos, às bruxas e à morte.
Ainda assim, nem todos os mitos que rodeiam esta aves são macabros... na Grécia antiga, os mochos era vistos como um símbolo de justiça e sabedoria, sendo associados à deusa Athena e tendo a sua imagem sido adoptada por exércitos e até cunhada em moeda. Na Índia, no Japão e no Brasil, por exemplo, existem culturas que vêem estes animais como augúrios de boa sorte e fortuna.
Também no nosso Portugal existe bastante folclore ligado a estes animais. Até na obra de um dos maiores nomes da nossa cultura podemos encontrar referências a uma destas belas aves:
“Pia, pia, pia O mocho, Que pertencia A um coxo. Zangou-se o coxo Um dia, E meteu o mocho Na pia, pia, pia.”
Mas o que têm estes animais de especial, para que sejam tema de tantas superstições? O que os torna um alvo tão apetecível para a capacidade inventiva da ignorância humana? Bem, o facto de serem aves essencialmente nocturnas será certamente um dos principais motivos... os seus olhos grandes, adaptados a ver no escuro, assombram-nos e o seu voo silencioso parece-nos fantasmagórico. Além disso, o facto de algumas espécies de mochos e corujas colonizarem edifícios abandonados, celeiros ou torres de igrejas excita a nossa imaginação supersticiosa. E o que dizer das suas vocalizações lúgubres, transportadas pelo frio escuro da noite? Quem não se arrepiaria ao escutá-las?
Mas então, afastando-nos um pouco das mitologias, porque é que estas aves apresentam estas características e comportamentos tão específicos?
Algumas espécies, como os mochos e as corujas-das-torres desenvolveram a capacidade de caçar em meios mais urbanizados. As actividades humanas atraem ratos e os ratos atraem estas aves. Portanto, celeiros e outras infraestruturas agrícolas são excelentes zonas de caça e, uma vez que se adaptaram à vida nestas zonas, onde arranjariam melhor protecção para descansar e até procriar do que em edificações abandonadas ou pouco visitadas? Dificilmente esta situação derivaria de ligação a espíritos ou bruxarias, mas antes de uma simples adaptação evolutiva... estes bichos aprenderam a usar-nos.
Quanto aos sons que emitem, as rapinas nocturnas não são (de longe) as únicas aves com vocalizações estranhas aos nossos ouvidos. Mas será que seriam assim tão assustadoras se escutadas durante o dia? O "miado" do mocho, ou o "uhh uhh" do bufo em pleno dia não têm o mesmo efeito em nós do que os mesmos sons ouvidos de noite... na verdade, é a nossa predisposição para o medo do escuro que nos causa os arrepios. As corujas vocalizam pelas mesmas razões que as outras aves. Não são almas a gritar no vazio... são avisos, chamamentos, marcação de território. Comunicação.
Mas e o voo silencioso? Nenhuma outra ave faz aquilo... só podem ser espíritos maléficos! Bem... não, nem por isso. A realidade é bastante mais interessante e complexa. A evolução levou a que estas aves desenvolvessem uma série de características e até estruturas específicas que ajudam a eliminar o som da turbulência do ar criada pelo bater das asas. Estes membros superiores são maiores em proporção com o peso do corpo, relativamente à maioria das outras aves. Isto permite-lhes um voo mais lento e menor número de batimentos de asa. Além do mais, as penas de voo (rémiges) possuem umas estruturas serrilhadas nos bordos que ajudam a quebrar a massa de ar que gera a turbulência. As diversas e menores correntes de ar assim criadas são depois amortecidas pelas penas que são mais aveludadas do que nos outros grupos de aves. Apesar de ainda haver muito para ser compreendido, existem já alguns estudos publicados com informação muito interessante sobre este assunto.
Quanto à razão que levou estes animais a desenvolverem este tipo de voo ao longo das eras, existem duas hipóteses principais em equação. A teoria da "caça furtiva" indicia que esta característica se deve à necessidade de aproximação sem que as presas se apercebam da sua presença. Já a teoria da "detecção de presas" indica que o voo silencioso serve essencialmente para ajudar as corujas a detectarem as suas presas através da audição. Estes animais têm uma audição extremamente apurada, que é auxiliada pelo seu característico disco facial, actuando quase como uma antena parabólica.
A investigadora da Universidade da Califórnia, Krista Le Piane, tem vindo a estudar estas duas hipóteses, na tentativa de compreender qual delas, se é que alguma, explica a evolução desta característica específica. Ao que parece, as espécies que caçam insectos ou peixes têm menos estruturas insonorizantes, por comparação com as que caçam mamíferos. O mesmo acontece em relação às espécies que caçam exclusivamente de noite, por comparação com as que também caçam de dia. A sua equipa de investigação tem percebido que estas evidências corroboram ambas as hipóteses, dependendo de cada espécie.
Tudo isto é bastante mais interessante do que as explicações esotéricas, diria eu...
Já os seus olhos, grandes em relação ao tamanho da ave, são outra fantástica adaptação. Embora o seu funcionamento geral seja semelhante aos nossos próprios olhos, existem algumas diferenças que ajudam a tornar possível a visão nocturna. Estes orgãos não são globos oculares, como os nossos, mas sim estruturas tubulares... daí que as corujas não consigam mover os olhos. Tal como nós, as corujas possuem dois tipos de receptores, que captam a luz que passa pelas pupilas. Os receptores cónicos permitem ver a cores, mas apenas funcionam bem quando há muita luz. Já os cilíndricos só permitem uma visão monocromática, mas são muito eficientes mesmo em baixas condições de luminosidade.
Ao contrário de nós, as corujas possuem uma muito maior quantidade de cilindros do que de cones, o que implica que não têm uma grande capacidade de distinguir cores, mas conseguem aproveitar bastante melhor as menores quantidades de luz. É essencialmente isto que, associado ao facto do seus enormes olhos captarem melhor a luz, lhes permite ver no "escuro". Estas aves possuem ainda uma outra estrutura, uma espécie de "espelho", chamada de tapetum lucidum. Quando a luz passa pelos receptores, incide neste espelho e é reflectida de volta para eles. Isto dá-lhes a uma segunda hipótese de aproveitarem cada pedacinho de luz disponível.
Mas as corujas não são as únicas aves que podemos encontrar pela noite fora...
Os misteriosos Noitibós (ocorrem duas espécies no nosso país) são outro grupo de aves que, devido aos seus hábitos, tende a escapar ao conhecimento comum e, portanto, a dar origem a mitos. A aura de mistério é tão forte em volta destes bichos que foi até homenageada pelos cientistas quando atribuiram um nome à ordem à qual pertencem: Caprimulgiformes.
Caprimulgus, em latim, pode ser traduzido por ordenha-cabras. Isto é algo que nos parece estranho, mas não mais do que isso. Já na América um dos nomes pelos quais estas aves são conhecidas é "goatsuckers" ou, traduzindo... chupa-cabras. Terá ligação com o outro famoso mito? Não consegui averiguar.
A lenda por trás deste nome terá, ao que parece, origens anteriores aos tempos de Aristóteles. Estas aves seriam possivelmente atraídas pelos insectos que frequentavam os terreiros onde as cabras dormiam. Devido ao seu hábito de poisar em terreno limpo (provavelmente junto ao gado) e ao seu perfil baixo e longilíneo, de cabeça meio levantada, seria fácil ao homem antigo assumir que lhes estavam a sugar o leite. Mais, tendo abatido algum e constatado que possuem um bico minúsculo e uma enorme boca, que outra conclusão se poderia tirar que não a de que aquela boca seria própria para mamar nas tetas das cabras? Possivelmente nunca se pensou que serviria para ingerir insectos... isso seria parvo.
Noitibó-de-nuca-vermelha (Caprimulgus ruficollis) Vila nova de Milfontes (18-08-2019) / Vocalização: https://www.xeno-canto.org/567036
Então e nos dias de hoje, em que poucos de nós possuem cabras, o que há a temer em relação a estas curiosas aves? Na realidade nada, mas... a escuridão silenciosa da noite não cessa de nos pregar partidas.
Raramente são vistas de dia, altura na qual estão a descansar, muito por culpa da sua plumagem críptica. E durante a noite? Bem... são mais vezes escutados do que vistos. As vocalizações destas aves são, aos nossos ouvidos, completamente alienígenas. Aquele som não pode vir de uma ave... é impossível! E aquele bater palmas a ecoar na noite, poderá vir de algo que não de uma qualquer alma penada? Poderá vir do voo de exibição de um noitibó, do hábito de bater com as asas uma na outra, fazendo o som de "bater palmas"? Nah, isso não faria sentido...
Quando são efectivamente vistos, encontramo-los poisados numa qualquer estrada de terra batida, ou vemos a sua forma rápida, esguia e escura a passar em voo, com os seus grandes olhos a brilhar perante os faróis do automóvel e uns pontos iluminados na cauda e nas asas. E se, ao mesmo tempo, os ouvirmos a vocalizar e até a bater palmas... Cruzes canhoto! Almas penadas! Emissários do Mafarrico! Vade retro!
A melhor forma de abandonarmos os nossos medos, por primitivos e irracionais que sejam, é através do conhecimento. Observando e estudando um pouco sobre o mundo que nos rodeia podemos compreender aquilo que nos assusta, que nos causa apreensão ou repulsa. Todas estas aves nocturnas têm pouco de obscurantismo. São antes animais fantásticos, possuidores de magníficas adaptações evolutivas e é, na verdade, um verdadeiro privilégio conseguir observá-los.
“Nada na vida deve ser temido, somente compreendido. Agora é hora de compreender mais para temer menos.”