Este é o animal geralmente associado à presente época festiva. Segundo a mitologia alemã, a deusa da fertilidade Ostera devolveu à sua forma original um pássaro que havia transformado em coelho, para diversão de algumas crianças. Ao ver-se novamente na sua forma emplumada, a ave pôs alguns ovos coloridos à laia de agradecimento, dando origem à tradição do coelho e dos ovos da Páscoa. É uma das teorias...
Entretanto, por cá e sem qualquer ligação a deusas ou a ovos enfeitados, evoluía uma espécie que viria a ganhar importância-chave nos ecossistemas mediterrânicos: o coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus). Este pequeno e ágil herbívoro é presa preferencial de diversos predadores, entre eles o icónico lince-ibérico (Lynx pardinus), a "manhosa" raposa-vermelha (Vulpes vulpes) e a ameaçada águia-imperial-ibérica (Aquila adalberti).
Hoje em dia, apesar da preferência por habitats de orla, em terrenos arenosos com interligação entre culturas, prados e zonas de mato denso, não é incomum que os vejamos num qualquer parque urbano, a fugir ziguezagueando como se estivessem indecisos acerca de qual o melhor caminho a tomar.
As suas tocas de habitação são profundas com várias entradas e galerias entrecruzadas, ao passo que as suas tocas de reprodução - também elas profundas - se limitam a uma galeria simples que é abandonada quando as crias atingem as 3 semanas de idade.
Coelho-Bravo (Oryctolagus cuniculus) Herdade de Pancas (21-01-2018)
Devido aos seus hábitos mais crepusculares, a uma excelente visão, a uma audição apurada e a uma grande capacidade de reprodução, o coelho-bravo prosperou na Europa (principalmente P.I. e França) - chegando mesmo a ser extremamente abundante na Península Ibérica - até início dos anos 50, altura em que um médico francês resolveu introduzir ilegalmente um vírus importado da América do Sul, para eliminar os coelhos que danificavam as suas culturas. A mixomatose, doença causada por este vírus, espalhou-se rapidamente e foi arrasadora, chegando a causar a perda de populações inteiras. Em meados dos anos 80 e através de coelhos domésticos importados da Ásia, chegou à Europa a doença hemorrágica viral, que viria a dar mais uma forte machadada na sustentabilidade da espécie. Nos últimos anos o número de efectivos diminuiu cerca de 70%...
Neste momento decorrem estudos e delineiam-se estratégias para tentar garantir a sobrevivência desta importante peça para os nossos ecossistemas e para algumas economias locais.
Hoje existem por cá também coelhos domésticos, criados para alimentação humana e coelhos exóticos, mantidos como animais de estimação. Uns são maiores, outros mais pequeninos, alguns têm olhos vermelhos, outros são mais felpudos, mais mansos, mais "fofinhos", mais bonitos...
Pode parecer simples e não ter a beleza ou a exuberância de outros, mas só o Coelho-bravo é livre e indómito... só ele carrega o carisma de um verdadeiro bicho do mato.
Vivemos tempos negros. Recolhimento e distanciamento social são as palavras de ordem, numa desesperada tentativa de ganhar vantagem nesta batalha contra um vilão invisível. Uma arma biológica dos americanos, dizem uns, uma estratégia económica dos chineses, alvitram outros. Há quem opine que é uma tentativa desesperada dos ambientalistas de nos ensinar uma lição, tal como há quem acredite que este não passa de mais um sistema de auto-defesa da natureza, apenas mais eficiente do que os últimos. Teorias sobre a origem desde momento geracionalmente marcante que vivemos, há para todos os gostos... podemos dar-lhes crédito ou não. Mas as consequências, essas são inolvidáveis: medo, desconfiança, incerteza, doença, morte.
Entretanto, indiferente aos dramas humanos, a natureza seguiu o seu curso e... prosperou. Sem a agitação do movimento constante de embarcações, as águas de Veneza estão tão límpidas que permitem ver os peixes no fundo (as tão propaladas imagens de golfinhos nos canais provaram-se falsas). Com o recolhimento da população, com o abrandamento da industria e do tráfego aéreo, a mancha de poluição sobre a China diminuiu drasticamente, brutalmente mesmo...
Por cá, paulatinamente e quase sem que déssemos por tal, a primavera chegou e envolveu-nos em sons, cheiros e cores.
Rubi (Callophrys rubi) Seixal (23-03-2020)
Enquanto na natureza mais um ciclo se completa e outro se inicia, uma nova e estranha realidade apanhou-nos a todos mais ou menos desprevenidos e cada um de nós vai lidando com ela o melhor que pode e sabe. Pessoalmente, a decretada e óbvia necessidade de distanciamento social na verdade não trouxe grandes alterações às minhas rotinas. Apesar de gostar da companhia de um ou outro bicho-do-mato, estou habituado a andar pelos campos sozinho e até posso dizer que é algo que realmente aprecio.
"Têm de ficar em casa." Se o distanciamento social não é grandemente problemático para mim, o dever de recolhimento mexe bastante com os meus processos. Com muito tempo livre e sem uma justificação válida para fazer as minhas mais extensas saídas de campo, tive que me readaptar. Com algumas excepções, é-nos permitido algum tempo no exterior para "passeios higiénicos", chamou-lhes o PM. Podemos ir caminhar, correr ou andar um pouco de bicicleta, sempre dentro daquilo a que a responsabilidade social nos obriga: devemos fazê-lo sozinhos, evitando contactos com outras pessoas.
Dada a conjuntura, porque não transformar uma limitação numa oportunidade? Sem poder sair para sítios mais atractivos ao nível de observação da natureza, desafiei-me a mim próprio a fazer um reconhecimento mais aprofundado da biodiversidade nas redondezas da minha "toca".
Passeios higiénicos ao meu estilo... a ver bichos. Estas breves saídas de um par de horas, num raio de uns 300 metros de casa, têm-me vindo a trazer encontros expectáveis e até a proporcionar algumas agradáveis surpresas.
Pequenos prados de flores coloridas albergam miríades de insectos, aranhas e outros invertebrados. Basta andar com atenção e podem observar-se criaturas de todos os tamanhos e feitios.
Y-de-prata (Autographa gamma) Seixal (22-03-2020)
Nas copas dos sobranceiros pinheiros de ar inóspito podem ouvir-se várias espécies de aves, empenhadas nos seus cantos primaveris de sedução... shhhh, não façam barulho, vamos tentar ver alguma.
Milheirinha (Serinus serinus) Seixal (24-03-2020)
E mesmo um aparentemente vazio caminho de terra batida pode proporcionar encontros com bichos de apecto curioso.
Para termos o privilégio de assistir aos miraculosos espectáculos da natureza que se desenrolam ao nosso redor, só precisamos de andar com atenção, centrarmo-nos menos em nós próprios e não deixar que a nuvem negra que actualmente paira sobre as nossas cabeças nos impeça de apreciar o mundo que nos rodeia.
A atenção aos pequenos detalhes, aos sons mais ténues ou aos movimentos mais dissimulados pode recompensar-nos com visões incomuns que, transportando-nos para as fábulas da nossa infância, nos fazem imaginar mundos repletos de criaturas fantásticas.
Se até num frio e estéril bloco de cimento podemos encontrar vida e beleza, porque não haveremos de acreditar que as coisas vão melhorar, que vamos aprender com esta lição e que vamos sair disto mais fortes, mais aptos e com mais respeito por este planeta que nos acolhe?
Olhamos lá para fora e vemos que, apesar das dificuldades (muitas delas criadas por nós), os animais adaptam-se, sobrevivem, prosperam, procriam. Sigamos o exemplo, temos muito a aprender com eles...
Enquanto pudermos vamos fazendo as actividades que nos permitem manter a sanidade mental, mas vamos ser cívicos, vamos evitar o contacto uns com os outros, vamos adoptar as recomendações que nos são transmitidas e vamos ganhar esta guerra.
Se há lição que a primavera nos traz é que, independentemente do rigor dos invernos, o sol volta sempre a brilhar e toda a vida se renova.