Nos últimos tempos, após saber-se que França se debatia com uma praga de mini sugadores de sangue, a internet portuguesa tem sido inundada com notícias sobre os percevejos, esses malvados vampiros! E cá no burgo não nos podíamos ficar com uma praga caseira, como por lá. Não, os nossos percevejos seguem as modas e, como tudo o que é mau ultimamente, são... asiáticos. (Será que têm os olhos em bico?)
A ladainha repete-se nos mais diversos recantos on-line, desde os grandes meios de comunicação nacionais, até aos pequenos periódicos regionais: "depois dos problemas em França, a praga chegou cá. Parece que os bichos vivem nas camas e só saem à noite para se alimentarem do nosso fluido vital, no entanto não são um problema de saúde pública, sendo apenas uma preocupação para agricultores e fruticultores. (Hã?!) Escondem-se nas madeiras da cama e nos colchões e são quase impossíveis de erradicar, mas deitam um odor desagradável quando esmagados." (então mas...)
Foram dias e dias a ler textos idióticos - aparentemente todos copiados uns dos outros - sem o menor rigor, sem o mínimo dos mínimos de investigação jornalística, com uma misturada de conceitos e de espécies digna de uma salada russa.
Felizmente, após algumas reclamações de quem percebe um bocadinho do assunto, lá começam a surgir alguns esclarecimentos pouco entusiásticos. Parece que afinal são espécies diferentes. Diz que "os nossos invasores" são inofensivos para as pessoas, pois só atacam plantas. A realidade é tão menos dramática, tão pouco dada a sensacionalismos...
No entanto, após tamanha entropia noticiosa, sobra uma questão pertinente: afinal, o que raios é um percevejo?
Em traços gerais, percevejo é o nome comum atribuído aos insectos pertencentes à subordem Heteroptera, que está contida na ordem Hemiptera (que também compreende as cigarras e as cigarrinhas).
Os infames percevejos-da-cama (bed bugs, em inglês) pertencem à Cimicidae, umas das muitas famílias dentro desta subordem dos percevejos. Estes insectos são parasitas externos e alimentam-se de sangue, como as pulgas ou as carraças. Já os agora famosos percevejos-asiáticos (Halyomorpha halys), pertencem a uma família totalmente dispar (Pentatomidae) e alimentam-se exclusivamente de plantas.
Estes últimos começam a ser de facto um problema em Portugal, como já o são há algum tempo na Europa, não por atacarem pessoas, mas porque, sendo uma espécie exótica invasora, têm causado graves prejuízos em explorações agrícolas. Já em 2019, a presença deste insecto no nosso país tinha dado origem a esclarecimentos do governo dirigidos aos agricultores e a seminários de instituições científicas.
Então, na prática, ambos são pragas. De natureza diferente, mas ainda assim pragas. Qual é o grande problema de toda esta confusão e desinformação? Os danos colaterais, diria eu...
À hora que escrevo estas linhas, existem 21.917 observações de 517 espécies de percevejos registadas na plataforma de "ciência cidadã" Biodiversity4All, em Portugal. Destas, apenas 5 observações são de 2 espécies de percevejos-da-cama: Cacodmus vicinus e Cimex lectularius. Incluem-se ainda 117 observações de percevejo-asiático.
Ora, baseando-nos apenas nos dados retirados desta plataforma e relembrando que ela é meramente um repositório de informação avulsa registada por cidadãos comuns, encontramos 3 espécies de insectos problemáticas. Três! Por oposição a 514 outras espécies de percevejos, na sua maioria autóctones e perfeitamente inofensivas.
Nestas matérias de biodiversidade, quando é lançada a confusão, seja por necessidade de sensacionalismo ou por incompetência dos media e até das entidades oficiais, geralmente há vítimas inocentes. Aconteceu, por exemplo, com o autóctone vespão-europeu (Vespa crabro) que, a reboque da cruzada anti vespa-asiática (Vespa velutina), se vê capturado nas armadilhas não selectivas de gente que não quer saber da sua importância ecológica e que não entende nem quer entender a diferença entre as espécies. E corre o risco de acontecer também com mais de meia centena de espécies autóctones de insectos que têm o azar de serem chamados de percevejos.
Estes animais, como polinizadores, têm uma função ecológica de extrema importância para os ecossistemas nativos e até para as nossas actividades agrícolas. É desolador pensar que, por terem um aspecto genérico semelhante a determinadas espécies ou até pelo mero facto de terem o mesmo nome comum, estes bichos possam vir a sofrer represálias derivadas do medo que nos é instigado por uma série de meios de comunicação social que, eles sim e ao contrário destes percevejos, estão sempre "sequiosos de sangue".
Percevejo (Heterotoma planicornis) Ribeira de Cabrela, Sintra (16-05-2021)
A Ponta dos Corvos é uma restinga que separa o leito do rio Tejo das águas mais interiores do Sapal de Corroios. Pertencente ao concelho do Seixal, este pedacinho de terra detém bastante importância histórica, pois ali se estabeleceu, em 1947, a chamada Fábrica Atlântica de Seca de Bacalhau. Com uma área de aproximadamente 40 ha e cerca de 600 trabalhadores, esta era a maior fábrica deste tipo na região. Encerrada desde o ínicio dos anos 90, todas as suas infraestruturas, bem como os moinhos de maré nas proximidades, encontram-se hoje completamente entregues ao degredo.
Mas os valores históricos não são os únicos, nem (na minha óptica) os mais importantes valores desta zona. O Sapal de Corroios é um importantíssimo refúgio de vida selvagem, infelizmente também ele completamente ignorado pelo poder autárquico.
Nascer do sol na Ponta dos Corvos (05-12-2015)
Apesar de massacrada com a grande quantidade de lixo por ali deixada e com uma perturbação relativamente constante, a biodiversidade deste local ainda é assinalavelmente interessante. Ali podemos encontrar várias espécies de plantas, bastantes insectos, alguns répteis e, claro, muitas aves. Entre estas últimas, sem dúvida que a mais vistosa é o flamingo-rosado.
Mas a avifauna deste local não é composta apenas pelos pernaltas cor-de-rosa, é muito mais diversa e interessante. No inverno, as aves aquáticas e limícolas dominam a paisagem, pois encontram ali excelentes condições para descansar e procurar alimento. Desde os corvos-marinhos que eu pensava que fossem a razão do nome deste local (informação entretanto corrigida pelo Sr. Manuel da Costa, nos comentários abaixo), passando pelas garças, tarambolas, patos, pilritos, maçaricos, gaivotas, rolas do mar... podemos observar bandos de centenas ou milhares de aves, miríades de pequenos corpos emplumados que se deslocam, ao ritmo das marés, entre os lodos expostos pela baixa-mar e a vegetação que lhes serve de poiso durante a preia-mar.
Esporadicamente até por ali aparece alguma ave mais incomum ou mesmo rara. Não fosse a constante presença humana, a localização privilegiada deste local iria possivelmente atrair ainda mais destas aves.
Outras aves, passeriformes e não só, frequentam as praias, os pastos, as ruínas e a vegetação de sapal. Várias espécies aparecem por ali na migração, como chascos e picanços, outras ficam para o inverno, como as petinhas, as lavercas e o pisco-de-peito-azul. Também há as que ali nidificam, como a poupa, o rabirruivo e o cartaxo. Se olharmos com atenção, podemos encontrar um variado leque de formas, cores e cantos...
Mas estas aves, sejam elas aquáticas ou terrestres, não estão totalmente seguras e protegidas. Várias rapinas frequentam este recanto, em busca de presas. Se algumas se alimentam de insectos e pequenos vertebrados - ou até de peixe - outras tiram partido da fantástica quantidade de presas emplumadas que por ali existem. A águia-d'asa-redonda é comum ali, durante todo o ano, o falcão-peregrino também pode ser visto com frequência, bem como o peneireiro-vulgar. Também a icónica águia-pesqueira passa ali o inverno, usufruindo da abundância de poisos seguros no meio do sapal para devorar os peixes que captura nas águas do Tejo. Estas, entre algumas outras aves de rapina, constituem o topo da cadeia alimentar deste ecossistema.
Mais abaixo, numa posição muito ingrata da cadeia alimentar, podemos observar por ali vários invertebrados, como gafanhotos e borboletas, alguns pequenos répteis e os sempre presentes caranguejos, nas zonas banhadas pelo rio. Pequenos e geralmente bem camuflados, estes bichos requerem a nossa melhor atenção, se os queremos encontrar. Mas vale a pena...
Também o coberto vegetal é interessante e até demasiado variado para os meus parcos conhecimentos. Assim, qualquer pessoa que por ali caminhe certamente encontrará uma ou outra plantinha mais vistosa, nem que sejam apenas aquelas cujas flores coloridas imediatamente nos chamam a atenção.
As actividades de veraneio desregradas, a enorme quantidade de lixo deixada pelos mariscadores, a falta de fiscalização às actividades lúdicas como a canoagem ou o stand-up paddle, a falta de civismo em geral das pessoas que usufruem deste fantástico espaço, estão a pôr em perigo aquele que é, provavelmente, o maior valor natural deste concelho. Diz-se até que há planos para dinamizar e modernizar as praias da Ponta dos Corvos... a forma como isto será levado a cabo poderá vir a colocar (ou não) ainda mais pressão humana sobre o sapal.
Urge repensar a forma como vemos e utilizamos os nossos espaços naturais, tal como urge exigir às autarquias que protejam e cuidem destes frágeis paraísos. Isto se quisermos que as crianças do futuro ainda possam deslumbrar-se com a delicadeza dos flamingos e maravilhar-se com o voo rasante de um bando de milhares de limícolas... não num zoo, não num qualquer documentário da BBC, mas sim ali, quase à porta das nossas casas.
O concelho do Seixal tem alguns locais com excelentes condições para a Observação de Natureza, principalmente ao nível da avifauna. Desde que tomei residência no concelho, tenho vindo a explorar alguns destes locais com o intuito de ir registando e inventariando a biodiversidade que por aqui encontro. O resultado dos meus esforços, bem como dos esforços de muitas outras pessoas, pode ser verificado num projecto na plataforma iNaturalist, que já conta com mais de 8000 observações de 1344 espécies, registadas por mais de 150 observadores:
Santa Marta do Pinhal pertence à freguesia de Corroios e é um pequeno centro urbano composto maioritariamente por edifícios multi-familiares e por uma zona industrial. É limitado a Norte e a Este pela autoestrada nº 2, a Oeste por Vale Milhaços e a Sul por uma zona de antigos areeiros, hoje colonizados por matos e pinhal.
Vespa (Chrysura rufiventris) (26-04-2020)
O bairro dispõe de um jardim central relvado (com algumas árvores de médio/grande porte) que, por ser pensado exclusivamente para o lazer humano, é relativamente insípido no que toca a biodiversidade. Ainda assim, como muitos animais já se adaptaram a viver em meios antropogénicos, podemos encontrar vida um pouco por todo lado. Rolas-turcas (Streptopelia decaocto), melros (Turdus merula), rabirruivos-pretos (Phoenicurus ochruros), pintassilgos (Carduelis carduelis) e até os exóticos mainás-de-crista (Acridotheres cristatellus) coexistem por ali com os humanos e as suas barulhentas crias...
No entanto o maior valor natural desta zona encontra-se na área a sul, onde antes existiam os areeiros. O abandono a que esses locais foram votados permitiu que a natureza se desenvolvesse e por ali podemos encontrar interessantes exemplos de vida animal e vegetal, dependendo da estação do ano.
Apesar do tipo de vegetação não ser exuberante nem propício a uma enorme diversidade de aves, é ainda assim possível observar várias espécies, como o pica-pau-malhado-grande (Dendrocopos major), a águia-d'asa-redonda (Buteo buteo), o abelharuco (Merops apiaster), a milheirinha (Serinus serinus), o verdilhão (Chloris chloris) ou o rouxinol (Luscinia megarhynchos), entre várias outras.
Entre as espécies vegetais que podemos observar na zona, encontram-se as minhas flores preferidas... orquídeas selvagens. Até hoje encontrei quatro espécies de orquídeas nos arredores de santa Marta: a erva-do-salepo (Anacamptis coriophora fragrans), a erva-língua-constricta (Serapias strictiflora), a erva-língua-menor (Serapias parviflora) e a abelheira (Ophrys apifera). Infelizmente, não deveremos voltar a ver algumas destas plantas, pois o habitat onde floresceram o ano passado foi soterrado pelas movimentações de terras junto ao novo complexo desportivo de Santa Marta. O desenvolvimento urbanístico pode proporcionar-nos comodidades e melhores condições de vida, mas cobra o seu preço...
Para delícia de alguns e arrepios de outros, facilmente encontraremos na zona uma variedade de espécies de répteis e anfíbios. Em Santa Marta já pude observar duas espécies de serpentes, duas espécies de sapos, uma salamandra e cinco espécies de lagartos. Infelizmente não os consegui fotografar a todos...
Até mamíferos selvagens como o coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus) ou o sacarrabos (Herpestes ichneumon) convivem connosco de uma forma muito mais próxima do que imaginamos. Quantas vezes teremos passado por um deles, escondido nas ervas, a poucos metros dos nossos pés?
Coelho-Bravo (Oryctolagus cuniculus) (22-03-2020)
E mesmo essa vegetação que os protege dos nossos olhos esconde muito mais do uns bichos e umas orquídeas... há surpresas muito agradáveis no coberto vegetal desta zona. É verdadeiramente fantástica a panóplia de cores e a miríade de formas que podemos observar, se caminharmos com atenção.
Entre esta área mais verde e a zona urbanizada propriamente dita podem ser observadas centenas de espécies de invertebrados... até mesmo dentro de casa. Alguns destes animais serão mais agradáveis à vista do que outros, mas todos têm o seu papel nos ecossistemas que nos rodeiam.
Até nos sítios mais insuspeitos podemos encontrar pequenas maravilhas, basta andarmos com atenção à natureza que nos rodeia. Da próxima vez que sair para um "passeio higiénico", esteja atento(a).