Goste-se ou não das questões religiosas que lhe estão inerentes, é inegável que a Jornada Mundial da Juventude é um marco importante no calendário anual de eventos de qualquer país. Portugal não é excepção e, com o acolhimento em Lisboa desta jornada em 2023, começam a notar-se movimentações na cidade, tanto a nível político como logístico.
Após a descontaminação da área envolvente e do isolamento dos resíduos no seu interior, o aterro de Beirolas foi preenchido com terras adequadas ao desenvolvimento de vegetação e foi assim deixado. É sabido que a natureza prospera onde o Homem abandona... ora, protegido de presença humana por vedações, este terreno foi reclamado pela vegetação e ali encontraram protecção e alimento várias espécies de insectos, aves e pequenos mamíferos, entre outros bichos.
Perdiz-vermelha (Alectoris rufa) Aterro sanitário de Beirolas (27-08-2020)
Este espaço onde agora vai nascer o novo jardim, foi berço de ninhadas de perdizes, fuinhas-dos-juncos e cartaxos. Foi protecção e alimento para patos, pardais, rolas, trigueirões, toutinegras-dos-valados, bicos-de-lacre, milheirinhas, pegas-rabudas, entre tantas outras espécies.
Foi também terreno de caça, patrulhado por predadores em busca dos pequenos seres que ali se protegiam. Aves de rapina como a águia-d'asa-redonda, a águia-sapeira e o peneireiro eram presenças regulares e também as garças-reais facilmente podiam ser observadas por ali, à procura de répteis, ratos e invertebrados...
No fim do verão/início do outono, os migradores de passagem aproveitavam a abundância de alimento e a protecção das ervas altas e do viveiro de árvores abandonado, para ali retemperar as preciosas energias antes de prosseguirem viagem para África.
Hoje, reina o pó e o barulho das máquinas. Do prado exuberante restam uns pastos amachucados e das árvores do viveiro sobram meia dúzia, que possivelmente ficarão no futuro jardim, testemunhas daquilo que foi, mas que não mais voltará a ser.
Por ora, ainda podemos observar pegas, perdizes, estorninhos e várias outras aves que vão encontrando alimento por entre os torrões revirados, mas findas as obras de fundo e começados os trabalhos de "paisagismo", só sobrarão as "aves de jardim", iguais a todas as outras que podem ser vistas nos relvados ali mais a jusante. Não mais veremos as pegas e as ninhadas de perdizes, nem o deslizar das icónicas rapinas, nos seus calmos voos predatórios. As miríades de insectos polinizadores que ali faziam a sua vida, terão que procurar outros espaços. Este pertence aos humanos.
Plantas exóticas, infrastruturas e equipamentos de desporto e lazer, cimento, plástico e metal a rodearem relvados insustentáveis, de aspecto artificial... é insaciável, a nossa sede por moldar o mundo à imagem da nossa concepção de beleza (talvez um dia - ideia louca - alguém nos ensine a apreciar a pureza da natureza, ao invés de a moldar aos nossos desígnios). Ali ao lado, nasce uma ponte para atravessar o Trancão e, aparentemente, entrar com mais um passadiço pelo sapal a dentro. Quando toca ao mundo natural, não há refúgio que não violemos ou santuário que não profanemos...
Vamos ter mais jardins, mais zonas de lazer e mais passadiços. Mais pessoas a andar, correr, saltar e pedalar enquanto falam, riem e gritam. A cidade irá, indubitavelmente, ficar mais bonita...
Eu? Eu estou apenas triste.
Perdiz-vermelha (Alectoris rufa) Aterro sanitário de Beirolas (12-07-2022)
Um habitat pode ser composto por um conjunto de diferentes biótopos, que não são mais do que áreas geográficas onde as condições ambientais são constantes ou cíclicas. Na verdade, grande parte dos habitats que existem no nosso país estão sujeitos a fenómenos periódicos que, de alguma forma, alteram as suas características.
Entre eles, as zonas intermarés serão, possivelmente, aqueles que apresentam a mais radical alteração de condições, num menor ciclo temporal. Margens ribeirinhas, praias, lagoas costeiras, sapais... consoante a geografia e geologia do terreno, as áreas deixadas a descoberto pela baixa-mar podem apresentar características muito diferentes. No entanto, há algo em comum em todos estes locais: o vai-e-vem regular das marés e o ritmo de vida que elas impõem às aves que ali se alimentam. Hoje vamos falar de um biótopo muito específico: as zonas de lodo.
Pisco-de-peito-azul (Luscinia svecica) Herdade da Gâmbia, Setúbal (25-01-2020)
Quando a maré retrocede, revelando paulatinamente os lodos repletos de pedaços de conchas e algas, as aves começam a mostrar-se, abandonando os locais onde repousam durante a preia-mar.
Fuselo (Limosa lapponica) Seixal (11-10-2020)
Milherango (Limosa limosa) Lisboa (29-01-2016)
Surgem vindas das salinas circundantes, dos pequenos mouchões dos sapais ou da vegetação marginal dos rios e começam a distribuir-se pelas margens crescentes onde se vão alimentar, acompanhando o refluxo das águas.
Várias espécies de límicolas percorrem os lodos húmidos em busca dos pequenos invertebrados dos quais se alimentam, chegando até a dar origem a bandos mistos com centenas ou mesmo milhares de indivíduos. Garças prospectam as águas rasas em busca de peixes incautos, flamingos filtram o lodo dentro de água, capturando os pequenos crustáceos que lhes dão a sua famosa cor, colhereiros "varrem" em busca de invertebrados e pequenos peixes. Podemos até encontrar passeriformes, como o pisco-de-peito-azul, nas zonas mais próximas da vegetação.
A questão da competição pelo alimento entre estas aves foi resolvida ao longo das eras, pela selecção natural. A diversidade de características físicas e comportamentais permite que coexistam num mesmo espaço.
Algumas possuem bicos longos, para procurar alimento que esteja enterrado mais fundo, outras têm bicos curtos para capturar pequenos animais que existem mais à superfície. Há as que têm patas mais longas e bicos como lanças afiadas, para poderem trespassar os peixes nas águas rasas e há os que desenvolveram bicos poderosos o suficiente para quebrar as cascas dos bivalves. Cada espécie está perfeitamente adaptada à forma como vive e se alimenta.
Maçarico-bique-bique (Tringa ochropus) Vila Franca de Xira (28-02-2016)Rola-do-mar (Arenaria interpres) Amora (28-01-2016)
Embora as espécies límicolas estejam geralmente em larga maioria, podemos também ali encontrar algumas gaivotas, rapinas, garças, patos e gansos.
Ganso-bravo (Anser anser) Vila Franca de Xira (05-11-2017)Marrequinha (Anas crecca) Vila Franca de Xira (10-04-2016)
E de vez em quando, muito de vez em quando, surge uma daquelas aves especiais que todos os observadores gostam de encontrar. Uma raridade vinda de paragens longínquas que encontrou abrigo num qualquer lodaçal deste recanto à beira-mar plantado. Como aquela garça americana que descobriu guarida numa vala algures num sapal algarvio, ou o pequeno maçarico que escolheu o rio Sado para passar o inverno, por exemplo.
Uma multiplicidade de formas, cores, sons e comportamentos... nestas zonas de aspecto escuro e monótono, mas ricas em alimento, a diversidade biológica é rainha. No entanto, passadas cerca de 6 horas, a maré virou e iniciou o seu avanço inexorável em direcção às margens, empurrando à sua frente esta miríade de aves que novamente ganharão os céus e se dirigirão aos seus locais de repouso. Mais um ciclo que se completa, numa dança interminável, ao ritmo das marés.